Â鶹ÊÓƵ

A Arte, como resistência e sobrevivência

Publicada em 10/11/2020

Lucimélia Romão é aluna do curso de Teatro da Â鶹ÊÓƵ. Acordeonista, artista de rua, performer e arte-educadora, participou do quinto encontro do Ciclo Pororoca, preparatório da 9ª edição do Festival Artes Vertentes, em diálogo com a curadora Elidayana Alexandrino. Em pauta, a denúncia do racismo estrutural e institucional no país, a partir da performance-instalação Mil litros de preto (que estará na programação do Artes Vertentes), e da confrontação com imagens que permeiam nosso cotidiano e se reproduzem em vários momentos ao longo da História da Arte.

A transmissão está disponível no canal do Festival Artes Vertentes no , com mediação de Luiz Gustavo Carvalho.

Nascida em Jacareí, interior de São Paulo, Lucimélia estudou em escola pública e “lá não se falava em Universidade Federal. Foi no reencontro com um amigo de adolescência que fiquei sabendo do curso de Teatro da Â鶹ÊÓƵ, e decidi tentar a seleção.” Aprovada, juntou o dinheiro de um trabalho como recreadora e veio para São João del-Rei, com a expectativa de conseguir bolsa para estudar. Deu aulas de teatro como bolsista em três projetos de extensão: num quilombo em Nazareno, no bairro Matosinhos e no Perfis, programa de educação financeira do curso de Economia. “Também fiz faxinas e trabalhei como garçonete para conseguir me manter. Depois toquei sanfona nos sinais de trânsito com o instrumento que ganhei - foram nove meses tocando só Asa Branca, a única música que eu sabia, e que me manteve por anos na Universidade.”

A escolha pelas Artes aconteceu no Ensino Médio, observando programas de incentivo à cultura que levavam espetáculos até as escolas. Encantada com uma peça a que assistiu, a futura artista pensou: “eu quero fazer isso!” E se matriculou em oficinas de teatro oferecidas pela Prefeitura de Jacareí, entrando logo depois para o grupo teatral da cidade. Ao mesmo tempo, fazia trabalho voluntário na biblioteca municipal, porque gostava muito de ler. “E as pessoas da minha convivência falando para eu não fazer teatro, porque não daria em nada, eu não ganharia dinheiro, era uma profissão muito difícil, precisaria de muita sorte.” Com isso, Lucimélia acabou optando pela Psicologia. Passou no vestibular de uma faculdade privada e, apesar de ter conseguido bolsa, teria que bancar a matrícula, o que a levou a desistir. Trabalhou com telemarketing, comprou uma floricultura aos 19 anos, que não deu certo, quando então decidiu fazer um curso técnico de teatro em Taubaté. “Não me vejo hoje fazendo outra coisa na vida”, afirma.

Desde 2014, quando ingressou no curso de graduação em Teatro na Â鶹ÊÓƵ, Lucimélia pesquisa o genocídio da população jovem negra no país. É possível, segundo ela, narrar o Brasil pelas mortes negras através das mãos do Estado. “É preciso falar de racismo de uma forma estratégica para que as pessoas não possam negar a sua existência. Porque reconhecem que o racismo existe, mas nunca assumem que aconteça com elas. Como então abordar esse assunto que por si só já é rejeitado? Para mim, a arte negra tem que ter uma dimensão sócio-política, lutar contra o pensamento hegemônico, e por isso tratar do abandono e do genoídio da juventude preta pelo Estado brasileiro.”

Corpo em presença
Graduar-se em Teatro vem sendo a realização de um sonho para a estudante. “Sou a primeira, da minha família inteira, de toda uma geração, a entrar numa Universidade Federal”, destaca. A frustração vivida aqui foi a realidade do racismo. “Eu não estava acostumada com ambiente hostil, desde passar por necessidade financeira a questões dolorosas de racismo.” Foi preciso coragem. “Descobri que eu não sabia escrever, como eu imaginava, e eu custei a voltar a escrever academicamente. Fiz três disciplinas extras, para ter confiança de que eu podia escrever.” Houve, contudo, muita acolhida, de pessoas que a estimularam e acreditaram o tempo todo no seu potencial.

O projeto Mil litros de preto - a maré está cheia, surgiu após o retorno de um período de mobilidade acadêmica em Belo Horizonte, seguido de um projeto de iniciação científica na Â鶹ÊÓƵ sobre teatro negro. “Aí eu fui entender que o racismo brasileiro é muito bem estruturado. O nosso projeto de nação é todo construído em cima da escravidão dos corpos pretos, por isso todas áreas do conhecimento precisam lutar, juntas, contra o racismo”, avalia Lucimélia.

Inquieta, sentia que precisava mudar sua realidade, parar de se apresentar somente em troca de certificados ou alimentação: queria receber por seu trabalho. Vê no edital de Artes Visuais do Centro Cultural da Â鶹ÊÓƵ a oportunidade que buscava. “Tinha que ser uma instalação, eu pensei na estrutura da performance porque, como atriz, eu precisava deixar o meu corpo lá.” Se a cada 25 minutos morre um jovem preto, pobre, periférico no Brasil, assassinado pela Polícia, de acordo com o Mapa da Violência de 2017, Lucimélia foi drástica: “Conseguiria encher uma piscina de mil litros de sangue, já que um corpo adulto tem em média 7 litros de sangue. Em 60 horas, encheria 1.000 litros. Cada balde tinha o nome de um jovem morto. Nomear essas pessoas é muito importante.”

Foram 59 horas de performance no Centro Cultural da Â鶹ÊÓƵ, que posteriormente se transformaram numa instalação permanente.

Algumas escolas de São João del-Rei visitaram a exposição, que reservava um espaço de diálogo para que o assunto fosse discutido com as crianças. A importância desse contato, para Lucimélia, foi fundamental. “As conversas foram muito ricas. A Educação é o que pode salvar nosso país. É um espaço de formação valioso, no qual, se conseguirmos essa troca, teremos um grande avanço na luta contra o racismo, pois normalmente é na escola que a criança tem o primeiro contato com o preconceito.”

Lucimélia espera que, passado esse momento de pandemia da Covid-19, as artes e a cultura cheguem mais perto do povo, estejam mais nas ruas, abertas a todos, como acontece no Inverno Cultural da Â鶹ÊÓƵ. Para que possa, igualmente, poder circular com outros espetáculos, fazer mestrado, continuar a pesquisa do teatro negro...