Â鶹ÊÓƵ

Para depois de setembro: "o suicídio é também uma questão ético-política"

Publicada em 07/10/2021

Não é nada fácil encararmos o retrato da dor. Quantas vidas interrompidas todos os dias são, hoje, lembranças tão doídas, como o retrato de Itabira na parede da memória de Drummond?

Falar da morte é, antes de tudo, decidir falar da vida, principalmente quando o fim acontece, antes do que se espera, pela via do suicídio. E, quem fica, necessita ser acolhido e respeitado em seu luto. Esse é um debate que precisa ser expandido para uma conversa que se mantenha atenta o ano todo, para que o discurso da morte e da culpabilização não seja favorecido e não vença o discurso da vida.

Ao compreendermos o suicídio também como um fênomeno social, verificamos duas situações frequentes, que acontecem subsequentes ao fato: a curto prazo temos a imitação, a identificação; e, a médio prazo, o contágio. Por isso, precisamos cautela ao abordarmos esse tema.

Quem nos trouxe esse olhar cuidadoso sobre o assunto foi a professora do curso de Enfermagem da Â鶹ÊÓƵ e uma das coordenadoras do Grupo de Trabalho de Valorização da Vida, Nadja Botti, com quem conversamos longamente na busca de um entendimento mais amplo sobre algo tão delicado e ao mesmo tempo tão duro. Duas ideias percorreram a entrevista: a proteção aos vulneráveis e a posvenção (oposto de prevenção) aos enlutados. Além disso, a compreensão de que cada um de nós somos as personagens principais de uma cena aberta da vida, que nos exige múltiplas interpretações.

Por que não falar sobre o Setembro Amarelo em setembro?
Nadja Botti: Essa é uma pauta complicada na prevenção do suicídio para os enlutados. Pelos dados que nós temos disponíveis até o momento, nos anos de 2016 e 2017 tivemos, no Brasil, um aumento de mortes por suicídio em setembro, um aumento das tentativas de morte e um aumento do sofrimento dos enlutados. E por quê? O fenômeno é complexo e singular, mas ele se desviou, se mercantilizou. O grande risco é que a morte se torne um mercado. Precisamos discutir a vida para preveni-la e o Setembro Amarelo costuma discutir a morte. Há contrapontos possíveis. Falar é muito importante, desconstrói os mitos para proteção e prevenção, mas tem que ser de setembro a setembro.

Muitos perguntam: por que as pessoas se suicidam?
Nadja Botti: O reducionismo também é um ponto a ser discutido, pois ele não nos ajuda no avanço da prevenção, como o fato de relacionar a morte por suicídio, em sua maioria, a transtornos mentais: isso é um equívoco que precisamos descontruir rapidamente. Estudos mostram que essa é apenas uma das possíveis causas, mas não o prognóstico. Que vulnerações as pessoas têm para antecipar o fim da vida? É sobre isso que devemos refletir. Precisamos estar atentos à dimensão do sofrimento. Não existe apenas um motivo. A situação é multicausal.

É uma questão também política e social?
Nadja Botti: Em 2016, a agenda pública de suicídio no Brasil e as diretrizes nacionais afirmaram que nos municípios que em que há um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), a incidência de mortes por suicídio foi reduzida em 14%. No que precisamos investir então? O que vemos é o contrário: o desmonte. Não podemos tirar o sujeito do social. Quais são os fatores protetivos que temos? Todos nós somos responsáveis em proteger. O que leva as pessoas a se tornarem vulneráveis? O que podemos fazer para proteger quem está em risco? Pode haver um sofrimento de cunho psicológico, mas não podemos reduzir a isso, existe o sofrimento de outra ordem, ético-político. As múltiplas tentativas de suicídio andam em paralelo com o curso de múltiplas violências: a doméstica, a escolar, a das redes sociais, a dos preconceitos vários, a dos excluídos. Que vidas são protegidas? Muitos são os direitos negados, muitos são os amanhãs capturados. Essa dimensão subjetiva é ética e política.

Quais seriam esses fatores protetivos?
Nadja Botti: Os fatores protetivos são, principalmente, o respeito, a inclusão e o esperançar os amanhãs, baseado em ações reais. Identificar pessoas significativas são fatores de proteção, são razões para se viver. Temos que cuidar para que as relações não se precarizem, e observar como essa sociedade em que nós vivemos nos adoece, nos desprotege. Precisamos usar a morte para falar da vida, pois quanto mais desolação, mais reação. A escuta tem que existir no momento da dor, pois para quem a está vivenciando, ela é insuportável (a pessoa não aguenta mais), é interminável (não tem amanhã), e inescapável (não tem saída). Gosto de ilustrar essa situação com um exemplo: supõe-se que a pessoa esteja num lugar fechado e aconteça uma situação de risco da qual ela precise sair rapidamente. Acende-se a luz de emergência e lá está escrito “Saída”; essa pessoa segue a seta e sai! Ela escolheu sair e tem esse direito, mas escolheu num momento de extremo sofrimento. Se nós conseguirmos ter um suporte para esses momentos, podemos tentar mostrar uma outra saída, mas muitas vezes não dá tempo.

Como cuidar dos sobreviventes enlutados por um suicídio?
Nadja Botti: A posvenção, que é a prevenção do suicídio dos enlutados, é permeada por várias emoções como a tristeza, a raiva, a dúvida e muitas perguntas. Esse enlutado é um sobrevivente. No mês de setembro, todos falam em morte prevenida, enumeram sinais, como se fosse uma relação de causa e efeito. A vida não é um dever. São várias as questões baseadas nas relações intersubjetivas. O Setembro Amarelo é muito sofrido para essas pessoas. Para cada morte, temos de seis a dez enlutados.

Para o retrato da saudade irremediável de quem fica, voltemos à Drummond:

Um ausente
Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.